RELATÓRIO 2019
- Repercussão
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RELATÓRIO 2019
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RELATÓRIO 2019
- DEFESA DAS INSTITUIÇÕES, DIREITOS E LIBERDADES CONSTITUCIONAIS
Há muitos anos as vidas política e democrática brasileiras não eram marcadas por desafios tão profundos como aqueles com os quais nos deparamos em 2019. Este foi o primeiro ano de mandato de um presidente eleito que trazia em sua bagagem um amplo e declarado histórico de hostilidades contra instituições, princípios e práticas democráticos.
Não à toa, vimos aflorar na sociedade brasileira uma atmosfera de expectativas ambíguas: faria Jair Bolsonaro um governo conservador dentro da normalidade democrática, respeitando as regras do jogo, a separação dos Poderes da República e a Constituição Federal ou avançaria em um projeto de caráter autoritário, atropelando preceitos republicanos e minando aos poucos a institucionalidade democrática?
Infelizmente, desde 1º de janeiro surgiram indícios de que instituições, direitos e liberdades fundamentais à democracia teriam seus limites duramente testados sob a nova Presidência. E ao longo de todo o ano, de fato, testemunhamos recorrentes ataques contra o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e outras instituições-chave para o funcionamento do regime democrático; direitos constitucionais foram suplantados e postos em xeque de forma sistemática nas mais diversas temáticas; além de termos vivenciado a emergência de um ambiente social marcado por variadas formas de intimidação e cerceamento de liberdades vitais à vida em democracia.
Fronteiras foram cruzadas em múltiplos âmbitos, tornando ainda mais determinante o papel dos atores políticos e sociais aptos a efetuar o controle social, a acionar o sistema de freios e contrapesos para a garantia do Estado Democrático de Direito, bem como daqueles capazes de denunciar as arbitrariedades em curso e mobilizar a sociedade a fim de impedir que medidas anti-democráticas pudessem avançar. É por isso que o Pacto pela Democracia atuou de forma consistente e incansável em ambas essas frentes, tendo logrado avanços e vitórias bastante relevantes na defesa das instituições democráticas e dos direitos e das liberdades constitucionais.
O controle da sociedade civil
A sociedade civil organizada brasileira é, historicamente, composta por atores e instituições de significativa relevância na defesa de direitos e liberdades democráticos e, por essa razão, tornou-se alvo de sucessivas hostilidades do governo federal ao longo do ano. Não foi grande surpresa que a ação inaugural de Jair Bolsonaro enquanto presidente da República tenha sido a edição de uma Medida Provisória que, entre dezenas de propostas controversas, ameaçava diretamente a liberdade de atuação das organizações da sociedade civil (OSCs) no Brasil. A MP 870/2019 atribuía ao Governo Federal o poder de coordenar, monitorar e supervisionar o trabalho de OSCs e organismos internacionais em todo o território nacional. A proposição feria notoriamente a Constituição Federal, pois comprometia a liberdade de associação e abria portas para uma potencial interferência estatal no funcionamento de entidades não governamentais, o que é expressamente vedado pela Constituição, além de ignorar e menosprezar a importância da existência de uma sociedade civil livre, autônoma, plural e atuante para a qualidade de qualquer democracia.
Coordenando uma forte mobilização cidadã por meio da campanha Sociedade Livre e uma assertiva estratégia de incidência política dentro do Congresso Nacional, a rede do Pacto pela Democracia conseguiu a alteração do texto da MP, retirando a ameaça às OSCs e garantido a aprovação de um conteúdo que estivesse em conformidade com a Constituição brasileira. Essa importantíssima vitória se deu após meses de esforços coordenados entre inúmeros atores e múltiplas frentes de pressão da rede do Pacto, envolvendo solicitações de audiência junto ao ministro responsável, diálogos com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, promoção do debate público via veículos de imprensa (exemplos aqui e aqui), estudos sobre textos alternativos em parceria com a Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada da FGV Direito SP, e uma campanha que resultou em mais de 4 mil e-mails de pressão disparados aos parlamentares envolvidos na tramitação da matéria, além de intensas articulações nos corredores da Câmara dos Deputados e do Senado (saiba mais sobre todo esse processo aqui).A separação de poderes em risco
A vitória no caso da MP 870 realmente se consolidou, mas não sem novas manobras pouco democráticas por parte do chefe máximo do Estado e do governo brasileiros. Visto que o conteúdo da Medida Provisória havia sofrido diversas alterações ao longo de sua tramitação no Congresso, em uma ação inconstitucional, Bolsonaro reeditou a MP, desprezando o papel e as competências dos demais Poderes da República dentro do jogo democrático. Esse tipo de manobra se repetiu ao longo do ano com outras matérias e, em um episódio simbólico, o presidente tornou clara a forma como enxerga e se relaciona com o Legislativo: "com a caneta eu tenho muito mais poder do que você", afirmou Jair Bolsonaro a Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. O presidente brasileiro desafiou abertamente o Legislativo, referindo-se à possibilidade de lançar mão de decretos como forma de legislar, ainda que as funções de tais dispositivos previstas na Constituição Federal não permitam tal conduta. Ao fazer essa declaração, Bolsonaro revelou mais uma vez sua tendência a posturas autocráticas e provocou novamente fortes reações de diversos setores da sociedade. A rede do Pacto pela Democracia posicionou-se publicamente não apenas sobre a afirmação inegavelmente antidemocrática, mas também acerca da forma sistemática do presidente em subjugar o papel das demais instituições da República e de exercer suas funções sem qualquer respeito pelo que dispõe a Constituição Federal.
A tentativa de enfraquecimento da transparência e da participação social
O desprezo conferido à institucionalidade democrática e à Constituição veio acompanhado do afastamento da sociedade civil dos processos de tomada de decisão política, sobretudo por meio do enfraquecimento de espaços e mecanismos institucionais de transparência e participação cidadã no Brasil. O governo tornou-se cada dia menos permeável ao olhar e à contribuição dos brasileiros nas construções de políticas públicas durante o ano de 2019. Dois acontecimentos de significativa gravidade merecem destaque. Ainda em janeiro, por meio de decreto (9.690/19), o então presidente em exercício, Hamilton Mourão, determinou a ampliação do número de cargos autorizados a impor sigilo sobre dados públicos, afrontando princípios constitucionais e contrariando o artigo 27 da Lei de Acesso à Informação (LAI), em preocupante indicação de uma tendência na redução da transparência e da participação da população em questões fundamentais para o país.
Graças à articulação de uma série de organizações da sociedade civil pró-transparência no Congresso Nacional, muitas delas integrantes da rede do Pacto, um projeto de decreto legislativo teve êxito em suspender os efeitos da medida. Poucos meses depois, por meio de um novo decreto presidencial (9.759/2019), Jair Bolsonaro determinou a extinção de centenas de colegiados (conselhos, comitês, comissões etc.) da administração pública federal. A decisão deu-se de forma unilateral, prescindindo da realização de qualquer espécie de consulta ou debate público, o que seria fundamental para este tipo de processo.
A reação da sociedade civil foi contundente e expressa por meio de posicionamentos públicos, artigos (aqui e aqui), entrevistas, entre outras formas de debater tal ameaça antidemocrática. O decreto acabou sendo barrado pelo Supremo Tribunal Federal, segundo o entendimento de que tal gestão seria de responsabilidade do Poder Legislativo, visto que a criação dos conselhos deve se dar via legislação.Cerceamento de liberdades e intimidações
Se no interior das instituições a participação da sociedade sofreu sérios ataques, do lado de fora vivemos também o cerceamento de direitos e liberdades de participar da vida política e do debate público. Cidadãos, organizações não-governamentais e associações das mais diversas naturezas foram alvo de gravíssimas ameaças às liberdades de expressão e associação garantidas pela Constituição Federal brasileira e pilares de qualquer democracia que se preze.
Em diversas ocasiões grupos e associações que se posicionavam contra o governo sofreram intimidações diretas, como foi o caso de professores em Manaus e de um encontro de militantes do PSOL, em São Paulo, além de outros relatos similares que não vieram a público por conta de possíveis represálias. Diante dos preocupantes acontecimentos de intimidação, a rede do Pacto pela Democracia manifestou publicamente seu repúdio e a urgência de que episódios dessa natureza não fossem normalizados. Sem causar qualquer surpresa, alguns meses depois, o próprio presidente Jair Bolsonaro afirmou que poderia mobilizar as Forças Armadas a fim de conter possíveis protestos sociais no Brasil, à semelhança do que vinha ocorrendo em diversos países vizinhos do continente sul-americano.
Diante dessa ameaça proferida por Bolsonaro, dezenas de organizações do Pacto solicitaram esclarecimentos formais por parte do presidente por meio de um ofício junto à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, a partir do entendimento de que a declaração trazia em si um potencial significativo de violação de direitos, de cerceamento de liberdades de expressão e manifestação, assim como de violação de privacidade.
Criminalização das ONGs
Na mesma esteira das ofensivas à sociedade civil, o ano de 2019 também foi marcado pelas crescentes e sistemáticas ameaças às organizações não-governamentais em atuação no país. Se desde o período eleitoral as ONGs já vinham sendo atacadas em seus discursos, ao longo do ano as acusações, intimidações e hostilidades ganharam em concretude e gravidade.
A já citada MP 870 inaugurou as afrontas contra esses atores, mas o caso mais emblemático talvez tenha sido durante as graves queimadas na Amazônia, quando o presidente insinuou, sem apresentar qualquer prova, que ONGs seriam responsáveis pelo fogo que tomou conta de inúmeras regiões da floresta. A declaração foi recebida pela sociedade civil organizada com profunda indignação tanto pela forma recorrente e infundada que tais ataques se repetiram, como pelo caráter ultrajante de uma afirmação como essa mirar entidades que se dedicam de forma íntegra e abnegada à defesa e à produção do bem público e que passaram a ser acusadas daquilo que tanto trabalham para combater.
Ainda que a afirmação não tenha causado grandes surpresas – afinal, segue em consonância com quem já havia declarado o desejo de varrer do Brasil todos os ativismos –, publicamos e protocolamos no Palácio do Planalto uma carta aberta ao presidente mais uma vez exigindo explicações e retratações. Não só não houve recuos, como o episódio ganhou contornos ainda mais inquietantes: sob o pretexto das queimadas, parlamentares alinhados ao governo federal propuseram a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito destinada, entre outras coisas, a investigar as ONGs em atuação na Amazônia e no resto Brasil.
A instalação de uma CPI como essa gerou alarme na sociedade civil dado seu conteúdo genérico e potencialmente antidemocrático, buscando criminalizar associações de toda e qualquer natureza em atividade no Brasil em nome de uma acusação absolutamente infundada. Mais uma vez pudemos contar com um estudo produzido por uma equipe de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas a fim de qualificar o debate público a respeito de CPIs focadas no trabalho realizado pelas ONGs no Brasil diante do histórico recente no Congresso Nacional sobre o tema. Com dados e argumentos bem fundamentados em mãos, uma comitiva da rede do Pacto percorreu os corredores da Câmara e do Senado com o intuito de compreender melhor as motivações para a instalação dessa CPI e tentar dissuadir seus atores e apoiadores à luz do caráter pouco democrático incutido em sua proposição. Um tom persecutório e de criminalização das ONGs marcou a argumentação dos requerentes, mas, felizmente, até o encerramento das atividades legislativas em 2019 o tema não havia avançado de forma concreta no Congresso. Governo e aliados em outros Poderes revelaram o pouco apreço pela sociedade civil organizada e a indisposição em colaborar com tais entidades, como deveria acontecer.Apologias à ditadura
Vê-se que foram múltiplas as investidas governamentais contra a democracia e a sociedade civil brasileira – organizada ou não – durante todo o ano de 2019. Além de medidas e posturas controversas e questionáveis no seio de uma sociedade democrática, houve também situações em que o espírito autoritário que marca aqueles que estão no comando do governo federal concretizou-se de forma escancarada. À ocasião do 55º aniversário do golpe de 1964, Jair Bolsonaro conclamou comemorações, mobilizando sua já característica retórica de relativização e revisão desse fato inquestionável da história brasileira. A atitude foi, evidentemente, alvo da nota pública subscrita por mais de 60 ONGs e coletivos da rede do Pacto, intitulada "Ditadura não se celebra, democracia, sim". E a repercussão foi tamanha que a ação chegou até mesmo a ser noticiada no Fantástico, da Rede Globo.
Em outros momentos do ano, atores-chave do entorno do presidente Jair Bolsonaro também se sentiram saudosos do passado autoritário do país e resolveram evocar repetidas vezes a edição do dispositivo responsável por agravar a repressão política e o terror promovido pelo Estado durante a ditadura militar brasileira entre 1964 e 1985, o Ato Institucional nº5.
Em outubro, Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e deputado federal eleito por São Paulo, afirmou que a reedição do AI-5 poderia conter um possível cenário de "radicalização da esquerda no Brasil" e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, expressou endosso à fala indagando sobre como tal medida poderia vir a ser implementada. Semanas depois, o ministro da economia Paulo Guedes fez nova apologia ao AI-5 como instrumento do qual se poderia lançar mão no Brasil caso protestos massivos tomassem conta das ruas do país, como vinha acontecendo em países vizinhos.
Ambos os episódios suscitaram imensa indignação dos mais diversos atores sociais e políticos brasileiros. Após a declaração de Eduardo Bolsonaro, a rede do Pacto pela Democracia lançou a campanha "AI-5 Nunca Mais", composta por um contundente posicionamento público por meio do qual mais de 70 organizações puderam manifestar indignação e rechaço ao fato e um potente vídeo que reuniu 27 parlamentares representantes dos mais variados espectros ideológicos expressando de forma taxativa seu repúdio diante da declaração intolerável proferida por um representante eleito dentro da democracia brasileira. Novamente, a ação ganhou atenção da grande mídia e repercutiu no Jornal Nacional. Já em resposta à declaração feita pelo ministro Paulo Guedes, produzimos um segundo vídeo-denuncia retomando o histórico das manifestações claras e notórias de desapreço do presidente e seus próximos em relação aos princípios e às instituições fundamentais ao funcionamento do regime democrático.Brechas para aprimorar a democracia
Diante das inúmeras situações preocupantes e desafiadoras para a construção democrática no Brasil, a rede do Pacto não teve alternativa senão focar majoritariamente em estratégias de denúncia de ataques e defesa das instituições, das liberdades e dos direitos que foram continuamente ameaçados ao longo de 2019. Mas, ainda que de forma reduzida, houve também espaço para a implementação de algumas iniciativas mais propositivas e que miravam contribuir para o aprimoramento de aspectos importantes do funcionamento das instituições democráticas. Duas delas merecem especial atenção: a campanha "Não ao fundão" e o "Gabinete de Inovação - Intercâmbio de Práticas no Legislativo".
A primeira foi uma grande mobilização que pretendia impedir um aumento considerado abusivo do montante destinado ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha proposto na Câmara dos Deputados. A ação foi articulada por um grupo notadamente heterogêneo de quase vinte atores da sociedade civil brasileira integrantes do Pacto pela Democracia, marcando uma colaboração rara em tempos de polarização política. A campanha mobilizou mais de 10 mil cidadãos em torno dessa pauta e, embora o valor aprovado tenha sido mais alto que o anterior, pode-se considerar que tivemos uma vitória parcial importante, pois o chamado fundo eleitoral ficou em R$ 2 bilhões em vez de R$ 3,8 bilhões, conforme a proposta original.
Já o Gabinete de Inovação foi uma iniciativa singular realizada pelo Pacto em parceria com o Instituto Update: em sua primeira edição, reunimos 39 mandatos das casas legislativas das esferas municipal, estadual e federal – de 12 partidos políticos distintos – para que, juntos, trocassem experiências do exercício legislativo e construíssem caminhos para a inovação nos parlamentos brasileiros. Garantimos a composição de um grupo diverso quanto a representatividade, trajetória e identidade políticas dos participantes, que desta vez foram os chefes de gabinete dos diversos mandatos selecionados. Além do intercâmbio de experiências e do espaço de diálogo e aproximação entre gabinetes com visões, origens e espectros políticos diversos, o encontro trouxe inspirações a partir de casos inovadores de mandatos legislativos em outros países e seu principal produto foi um primeiro mapeamento das inovações já em curso nos parlamentos de todo o país. O Gabinete de Inovação deve ganhar novas edições a partir de 2020!
Foram incontáveis os desafios de 2019 para a garantia do Estado de Direito, do pleno respeito à Constituição Federal e da primazia de princípios e práticas democráticos no Brasil de Jair Bolsonaro. Apesar do cenário preocupante, o Pacto pela Democracia cumpriu seu papel e firmou-se como um ator relevante na defesa das instituições, das liberdades e dos direitos fundamentais à democracia do nosso país. Em 2020 não será diferente.
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